60 anos depois, Mafalda segue perguntando por que permanecemos silentes | Artigo de Marcos Antonio Corbari
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A mais famosa personagem dos quadrinhos argentinos está completando 60 anos. E segue conosco, questionando por que ainda fazemos tão pouco.
Mafalda, a menina invocada, perguntadeira e insistente, caracterizada pelo cabelo revolto, vestido encarnado e laço borboleta chega a seis décadas de sua primeira publicação. Apesar de seu papai, Joaquim Salvado, o Quino, a ter produzido por apenas uma década (entre 1964 e 1973), a guria seguiu ativa perambulando em meio as nuances da história e, principalmente, às peleias dos povos.
Desaforada, bailou em meio a diferentes ciclos de autoritarismo – alguns bastante violentos, outros mais violentos ainda, porque todo autoritarismo o é – alegorizando sopas e cassetetes para ensinar a importância de se fazer perguntas (mesmo quando é perigo perguntar).
Schulz e seu Charlie Brown já haviam quebrado a ideia de que as tiras ditas cômicas tinham uma certa “obrigação” de fazer rir. A introspecção já era uma nuance que interessava aos leitores de quadrinhos seriados na época. Se “fazer pensar” não era algo novo, talvez o “incomodar”, o “cutucar”, o “mover da zona de conforto”, o “colocar o dedo na ferida” que Quino traz com Mafalda sejam as novidades a se apontar ali.
Aliás, os quadrinhos argentinos têm muitas referências a esse cronismo cotidiano, mas deixemos esse tema para outro escrito, noutro momento. Porque logo precisaremos escrever aqui também sobre Oesterheald e o seu Eternauta.”
Voltemos a Mafalda. A menina foi parida para ser a garota propaganda de uma máquina de lavar roupas da marca Mansfield, cuja campanha foi cancelada pelos executivos. Se não serviu para ser símbolo de consumo, caiu com perfeição como símbolo de questionamento aos padrões burgueses capitalistas, ao status quo dominante de seu tempo (e dos tempos que viram depois do seu).
Erguia-se desde a Argentina, a “voz” de uma menina de 6 anos de idade que se tornaria uma improvável anti-heroína mundo afora com suas falas ingenuamente ácidas e agudamente inconformistas. Sob o disfarce da interpretação da infância, tocou em temas sociais espinhosos, deu pitacos certeiros na geopolítica, pontuou preocupações sociais urgentes e questionou os adultos que estavam ao lado de fora da tira por que permaneciam silentes. Aliás, observe, como continua nos fazendo a mesma pergunta.
“Quino parou de publicar Mafalda depois de uma década de tiras diárias. Dizia que havia um risco sério de repetir-se. Hoje podemos compreender. Os ciclos históricos, de certo modo, comprovaram-se incomodamente circulares, inclusive em seus erros, violações e violências. Mafalda, porém, não parou. Apropriada pelo povo, seguiu nas ruas, ressignificada de diversos modos. Tornou-se ícone feminista, ganhou cores de diferentes pautas progressistas, emprestou seu inconformismo às mais diversas causas contra-hegemônicas mundo afora.”
Nessas apropriações “não-autorizadas” pelos detentores dos direitos de publicação da personagem (mas seguramente bem autorizados pelo ser que habita o imaginário coletivo dos povos), não é difícil encontrar Mafalda personificando a criança sem-terrinha no Brasil enfrentando os latifundiários em busca de um pedaço de chão para plantar suas roças e suas esperanças; ou lá para os lados do Oriente Médio, trajando keffiyeh, como criança palestina de funda na mão contra-atacando o tanque de guerra do exército agressor em defesa de sua pátria; ou nos dias de hoje, na sua Argentina, de mãos dadas com las Madres de la Plaza de Mayo exigindo respostas e justiça por seus filhos assassinados.
A história, antes de ser escrita, contada ou interpretada, acontece. É dinâmica. É tempo presente. Se somos leitores do ontem, somos personagens do agora. Certa vez Quino foi questionado como seria o futuro de Mafalda se a menina tivesse crescido, se teria alcançado o sonho de ser intérprete da Organização das Nações (ONU) para assim ajudar a mediar os conflitos no mundo e alcançar a paz na Terra.
Respondeu que se Mafalda tivesse crescido, provavelmente estaria entre as listas de nomes assassinados e desaparecidos pelas ditaduras argentinas. A resposta, dura em sua essência, alinha a importância de a pequena e incômoda menina seguir presente a atuante junto conosco, seguir rebelde para além dos contratos de sua editora, para além da temporalidade de seu papai (que nos deixou em 2020), para além de nossas próprias conveniências e lugares de conforto.
Repito o que escrevi há dez anos: Mafalda segue conosco, cada dia emitindo novos olhares sobre esse tempo cinzento no qual convivemos, aprendendo com o passado para ter o direito de sonhar com um futuro melhor. Paul Ricoeur ensinou de forma pertinente: nem sempre a linha que divide história e ficção é evidente. Trata-se, em muitos momentos, de um alinhavo composto por duas linhas, compondo pontos que se sobrepõem, onde um campo permeia o outro.
Quiçá te demos, Mafalda, a resposta que espera de nós. Com palavras e com movimento!
Marcos Antonio Corbari é jornalista e comunicador popular, vinculado ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e à Via Campesina. Mestre em Literatura, em sua dissertação teve Mafalda como um dos personagens analisados.