Comentocracia, doença do jornalismo | Artigo de Sergio Leo

A competição com as redes sociais e a lógica dos influencers agravou uma doença latente no jornalismo, a comentocratite, que transforma em peça do noticiário comentários que os jornalistas, esses palpiteiros, costumavam deixar para a mesa de bar após o fechamento do jornal.

Os jornais, agora, veiculam informações em tempo real, com equipes menores que antes e sem a generosidade orçamentária que financiou tantas reportagens de fôlego. É o habitat preferencial da comentocracia, essa comunidade contaminada pela opinião ligeira, pelas explicações pré-moldadas.

Como uma pandemia sem controle, o fenômeno não tem fronteiras. Dos grupos identitários aos analistas neoliberais, todos gemem conceitos previamente inoculados para lidar com os fatos que se sucedem em uma velocidade superior à capacidade de colocá-los em contexto. Irracionalidades no gasto são apenas confirmações da tese de ineficiência do Estado; o preconceito é explicação para todo tipo de atitude que desagrade o comentarista; as ações do personagem político são, de modo geral, apenas confirmação do estereótipo já atribuído a ele…

comentocrata pode ser generalista – e os consumidores de notícia que aguentem a enxurrada de clichês e platitudes, geradas por quem passa boa parte do tempo, até durante entrevistas ao vivo, checando, não os fatos, mas as novidades no celular. Ou pode ser um especialista; e aí temos a monomania do comentocrata, que, para alimentar seu público especializado, busca reduzir todos os acontecimentos, mesmo os mais complexos, a meros exemplos do tema específico que o tornou conhecido – e contratado, ou monetizado nas redes.

O campo progressista é um exemplo constante de boas intenções condenadas ao inferno da opinião de bases frágeis, panfletárias e nada jornalísticas. Um desserviço comum à legítima causa identitária é a ação de militantes pretendentes a influencers, cobiçosos de posições de liderança, que criam conflitos imaginários forçando a barra na identificação de preconceitos.

Exemplo disso foi a recente coluna, na Folha de S. Paulo, de Mariliz Pereira Jorge, depreciando o tremendo esforço jornalístico do youtuber Felipe Bressanim Pereira, o Felca, cuja denúncia, em vídeos chocantes, levou ao primeiro plano a questão do abuso de menores nas redes sociais, a ponto de ganhar prioridade na agenda do Congresso.

Argumento da Mariliz: várias mulheres já vinham denunciando exaustivamente a questão; mas a sociedade só se moveu desse jeito porque apareceu um homem dizendo a mesma coisa.

Menas, Mariliz.

É injusto e inusitado ver machismo onde há um generalizado e bem-vindo reconhecimento de um trabalho extraordinário. É grotesco.

Se alguém apontar um vídeo feito por alguma outra pessoa, com a qualidade informativa e dramática desse divulgado pelo youtuber, talvez aí a colunista tivesse razão.

Seria excelente se tivesse. Teríamos mais elementos para punir culpados e avançar na luta por maior responsabilização das Big Techs pelo conteúdo criminoso que veiculam, fazendo dinheiro grosso com isso. O trabalho de Felca, com imagens verídicas, inquestionáveis, deu urgência à discussão sobre o controle necessário nas redes sociais e sites de internet. Uma atuação do Estado que a extrema direita e desorientados liberais acusam de “censura”, “ditadura” e ofensa à liberdade de expressão.

O vídeo do youtuber, rapaz branco claramente de classe média com boa renda, de longos cabelos bem cuidados, não traz nenhum elemento que o caracterize como produção tipicamente do gênero masculino, coisa de homem, produção impossível de partir de alguém que se identifique com o gênero feminino.

A repercussão do vídeo alimenta-se, claro, do histórico combativo do Felca, que já havia comprado briga – e sido ameaçado por isso – com a máfia dos sites de aposta. O que diferencia o vídeo e lhe deu notoriedade foi algo cada vez mais difícil de se ver na imprensa: jornalismo investigativo. Felca mostrou a todos que não é necessário orçamento milionário nem grandes equipes para produzir material forte e de qualidade, não acadêmico, não partidário ou militante, mas jornalístico, cuidadoso, documentado, visualmente provocador, tecnicamente bem-feito.

Felca denunciou o enriquecimento de oportunistas com vídeos infantis, até os mais inocentes, vendidos para desequilibrados mentais. E, de trivela, marcou um golaço na discussão sobre a urgência em estabelecer regras que obriguem as grandes empresas de tecnologia, um oligopólio informativo, a deixar a hipocrisia de seu comércio amoral e contribuir de fato ao esforço da sociedade no combate ao crime contra a infância.

É sintoma machista, essa capacidade de usar a informação de maneira original, e mobilizar emoções e iniciativas contra um crime condenado à esquerda e à direita?

É triste, ver um trabalho político da qualidade – inédita – desse, do youtuber, ser confiscado pelo oportunismo que tenta esvaziar sua importância para ganhar pontinhos com a militância de gueto. Felizmente, já se notam na internet e nos meios de imprensa contribuições e desdobramentos desse trabalho, por parte de mulheres, algumas delas pioneiras nos alertas contra o que Felca chamou de “adultização” da infância e comercialização imoral e ilegal de imagens infantis para pedófilos.

É uma causa comum; Felca deu um exemplo que merece ser acompanhado pelo bom jornalismo, não distorcido e rebaixado para caber na agenda particular e míope de algum comentocrata.


Sergio Leo é jornalista e escritor. Foi colunista no Valor Econômico, colunista interino no O Globo e Jornal do Brasil, diretor na sucursal Brasília da Isto É Dinheiro e diretor regional do Estado de S. Paulo em Brasília. Foi repórter especial no JB, Folha de S. Paulo, O Globo, Isto É e TV Globo, e colaborou com as revistas Piauí, Poder e Carta Capital, e os sites El País Brasil e Neofeed.

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