Compras públicas e inovação social | Artigo de Teresa Corção, Luiza Xavier e Fernando Teixeira
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As formas atuais de produzir, processar, distribuir, consumir e descartar alimentos contribuem para eventos climáticos extremos, alterações no regime hídrico e altos índices de desperdício. Torna-se, assim, evidente a necessidade de mudanças estruturais na cadeia alimentar, com a valorização dos ecossistemas, a produção de alimentos sem agrotóxicos, a reformulação do tratamento de resíduos e o desenvolvimento de novas soluções de embalagem, entre outros aspectos.
Governos podem transformar esses desafios em oportunidades de mercado para produtores e empresas dispostos a inovar em parceria com o setor público. Em relatório recente intitulado A Mission-Oriented Approach to School Meals, Mariana Mazzucato defende que as compras públicas para alimentação escolar são essenciais para alcançar o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – “acabar com a fome, alcançar segurança alimentar e nutrição adequada e promover a agricultura sustentável”. Nesse sentido, sustenta que os sistemas agroalimentares precisam articular inovação e investimento intersetoriais, além de cooperação governamental e inovação social.
Os programas de alimentação escolar podem contribuir para essa missão quando são estruturados para gerar demanda por alimentos saudáveis, sustentáveis, saborosos e acessíveis. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que atende cerca de 40 milhões de estudantes, é um dos maiores do mundo. Ele determina que, a partir de 2026, ao menos 45% dos recursos federais sejam destinados à compra de alimentos da agricultura familiar, com atenção especial a produtores locais, tradicionais, indígenas, quilombolas e mulheres.
Essa diretriz busca estimular o desenvolvimento econômico local, integrar pequenos produtores às cadeias nacionais de valor, respeitar os hábitos alimentares e o potencial agrícola de cada território, além de privilegiar alimentos frescos.”
O programa também incorpora metas de sustentabilidade às compras públicas, permitindo que gestores paguem valores mais altos por produtos com certificação orgânica ou agroecológica. Na prática, os alimentos orgânicos são mais facilmente priorizados, pois contam com normas e rotulagem consolidadas, enquanto padrões mais amplos de sustentabilidade ainda recebem menor ênfase. A identificação de produtos “agroecológicos” é pouco disseminada, embora o Selo Verde do Governo Federal, lançado em 2024, busque padronizar e certificar produtos e serviços com base em critérios de sustentabilidade — o que pode facilitar essa priorização no futuro. A saúde alimentar é outro pilar do PNAE: exige-se que 75% dos alimentos adquiridos sejam minimamente processados, reforçando o compromisso com a qualidade nutricional.
Parte do êxito do PNAE na dinamização dos mercados locais resulta de mudanças deliberadas na política de compras públicas. Destaca-se a criação da Chamada Pública, que simplificou a seleção de agricultores familiares e pequenos produtores, dispensando etapas de licitação previstas na legislação geral. Esse mecanismo valoriza critérios sociais e regionais, fortalece sistemas alimentares locais, amplia o acesso e promove agricultura sustentável e segurança alimentar.”
Ainda assim, a participação dos pequenos produtores varia significativamente entre as regiões. Apesar de uma tendência de crescimento, a adoção de práticas de compra mais estratégicas segue desigual, e a minimização de preços continua sendo o principal critério de seleção em muitas localidades. Além de outras questões, são também encontrados casos de municípios que não conseguem executar a Lei por falta de articulação com os agricultores locais, o que faz com que adquiram os alimentos orgânicos de produtores de fora do estado – o que eleva as emissões e reduz a resiliência territorial da cadeia alimentar.
Para aprimorar o programa, é fundamental ampliar o envolvimento dos atores sociais locais, construindo um ecossistema simbiótico que conecte todo o processo: mapeamento de produtos, organização de produtores, financiamento, estocagem, logística e distribuição, elaboração de cardápios alinhados à sazonalidade, capacitação das equipes de cozinha e conteúdos pedagógicos sobre alimentação saudável e sustentável.
As capacidades instaladas variam amplamente entre municípios e regiões, o que requer diagnósticos precisos para identificar necessidades específicas e orientar o tipo de inovação social mais adequada a cada contexto. Por isso, governos podem – e devem – incorporar desde o início espaços de participação de comunidades, pesquisadores, agricultores, empresas e trabalhadores na formulação e execução das políticas, fomentando inovação de baixo para cima.
Entre as possibilidades, é possível pensar sobre valorizar alimentos territoriais por meio de oficinas práticas, promover capacitações de equipe de cozinha e engajamento comunitário, combinando saberes tradicionais com normas de qualidade, inocuidade e sustentabilidade. Essas experiências ressaltam a importância de se mapear produtores locais, promover diversidade nas cadeias de abastecimento, educar para hábitos alimentares saudáveis e assegurar regularidade na oferta dos gêneros. Esses tipos de práticas fortalecem não apenas a gastronomia regional e cultural, mas também contribui para que o PNAE cumpra seus objetivos: oferecer alimentação saudável para estudantes, apoio à agricultura familiar, uso de alimentos frescos e sazonais, além de fomentar uma gestão pública escolar mais participativa, equitativa e ambientalmente consciente.
Associar inovação social às compras públicas de alimentação escolar pode criar um ciclo virtuoso de investimento, aprendizado e desenvolvimento local. Em síntese, é necessário articular os atores, identificar gargalos e promover espaços de colaboração entre setor público, comunidades e empresas para que a política alcance efetivamente a ponta — garantindo uma alimentação escolar saudável, sustentável, saborosa e acessível para todos.
- Teresa Corção – Mestra em Design de Inovação pela Escola Superior de Desenho Industrial (ESDI/UERJ) e Diretora Executiva do Instituto Maniva.
- Luiza Xavier – Doutora em Urbanismo pelo Programa de Pós-graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ) e Gerente de Inovação do Instituto Maniva.
- Fernando Teixeira – Doutor em Economia pelo Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGE/UFF) e pesquisador do Finde.
