Já vivemos sob o império global das Big Techs? | Artigo de Miguel Nicolelis

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No meu livro de ficção científica, “Nada Mais Será como Antes” (editora Planeta, selo Minotauro), publicado no ano passado, a trama central se desenrola no ano de 2036, enquanto o nosso querido rochedo sideral, já não tão azul, também conhecido por Terra, enfrenta a convergência cataclísmica de múltiplas crises terminais, desencadeadas em grande parte por um modo de vida totalmente insustentável, imposto goela abaixo para todo humanidade.

A sincronização de todas estas crises no ano de 2036 coloca em risco não apenas a sobrevivência da nossa própria espécie, mas também a previsão de todas as outras formas de vida orgânica ao nosso redor.

Do ápice do impacto das mudanças climáticas, que seguir um efeito perfeito dominou desencadearia uma sequência devastadora de eventos mundo afora, como incêndios infernais e furacões e tsunamis jamais vistos, secas prolongadas que quebram safras essenciais e escassez de água potável, queda brutal na produção de energia por fontes renováveis ​​devido à redução do volume de suas barragens de usinas hidrelétricas e até ao eclosão de novas pandemias, devido ao surgimento de novos vírus até então desconhecidos da humanidade, devido ao derretimento das geleiras do Polo Norte e da Groelândia! Sim, ela mesma: a Groelândia! Trump que me perdoe!

Contudo, tragédias como as enchentes no Rio Grande do Sul, a seca épica na região amazônica e os incêndios ocorridos em Los Angeles neste começo de 2025 trouxeram a mim dar a impressão que, ao invés de ser apenas um livro de ficção científica, o meu enredo tenha rapidamente se transformado num ensaio jornalístico do estado caótico por que passa a humanidade neste exato momento em que esta coluna está sendo escrita. Ou seja, no presente presentíssimo!

O que era apenas uma desconfiança se transformou em quase certeza quando duas das outras crises existenciais preditas no meu livro para eclodir por volta de 2036 passaram a se tornar totalmente explícitas no nosso momento atual.”

Na realidade, estas duas crises estão intimamente ligadas, pois servem como instrumento fundamental para a manifestação do verdadeiro plano de negócio da segunda. Eu me refiro à primeira como uma serpente – uma Mamba Digital, me parece ser a imagem correspondente – de duas cabeças que eu denominei como o “vírus informacional” e a sua gêmea siamesa, conhecida como “a dependência digital”. Desta Mamba digital de duas cabeças emana o combustível que alimenta a maior de todas as crises previstas na minha ficção científica, mas que claramente está começando a sair da proverbial toca com 11 anos de antecedência.

Eu me refiro a um plano de dominação global engendrado pelos Overlords das Big Techs, ou se vocês preferirem, uma “aquisição hostil” alinhavada pelos cardeais do Culto da Máquina em associação com seus parceiros no mundo das altas finanças, que visa tornar obsoletos os mecanismos tradicionais de governança e funcionamento dos estados nacionais – incluindo executivo, legislativo e judiciário – por todo planeta.

Além disso, este projeto de criação de um Império tecnológico global teria como meta implantar um novo regime sociopolítico e econômico, muito reforçado pelo ex-ministro das Finanças da Grécia, Yánis Varoufakis, com o nome de Tecnofeudalismo.

Mas o que poucos analistas notaram é que este projeto megalomaníaco também tem como ambição não menos insana obter acesso irrestrito a todos os nossos dados pessoais, produção intelectual e comportamentos humanos, eliminando de forma definitiva toda e qualquer barreira que impeça a invasão definitiva de nossa privacidade.

Pasmem vocês, o objetivo final não é apenas obter toda sorte de dados gerados por seres humanos para treinar os LLMs (Large Language Models) de grandes empresas que monopolizam a área conhecida equivocadamente como Inteligência Artificial mas, no limite, moldar nossas opiniões, através do A propagação massiva de notícias falsas – o vírus informacional, a que me referi acima – e mesmo controla a mente coletiva da humanidade, através da homogeneização não só de comportamentos, mas principalmente da nossa forma de pensar.

Basicamente, este projeto tem por objetivo final violar o último bastião, a única fortaleza que ainda resiste intacta e intransponível a esse verdadeiro assalto à privacidade humana: o nosso cérebro! Os recentes sinais de que o parágrafo anterior não pode ser visto apenas como uma narrativa de um livro de ficção científica, ou alguma teoria da conspiração extraída da deep web, se tornou amplamente explícitos nos últimos meses, de forma quase que diariamente. Ou alguém ainda não se deu conta do compromisso financeiro e pessoal com que o homem mais rico do mundo se lançou na campanha presidencial americana?

Não bastassem os mais de US$ 250 milhões [250 milhões de dólares] doados para a campanha de Donald Trump – uma pechincha como veremos abaixo – após a eleição, o próximo co-presidente virtual dos EUA, como vários veículos de mídia americana passaram a tratar o dono da plataforma social conhecida anteriormente como o Twitter, passou a usar seus mais de 200 milhões de seguidores – ou aproximadamente um terço dos assinantes do X – para atacar o primeiro-ministro do recém-eleito governo do Reino Unido, manifestar seu apoio ao partido de extrema direita alemã, com ligações com grupos neonazistas, nas próximas eleições do país, insultar o primeiro-ministro do Canadá – que acaba de renunciar – e protestar contra as cortes italianas nas suas decisões de bloquear algumas políticas draconianas contra imigrantes, propostas pela primeira- ministra italiana, Giorgia Meloni.

Na realidade, os mais de US$ 250 milhões investidos na campanha presidencial americana pelo senhor Musk, que recebeu a distinção de ter sido, de longe, o maior responsável pela propagação de notícias falsas na sua própria rede social durante a eleição, podem ser considerado um dos seus melhores investimentos, sem dúvida alguma. Afinal, ele começou 2024 com uma fortuna estimada em US$ 229 bilhões [229 bilhões de dólares] e terminou o mesmo ano com uma fortuna estimada em US$ 442 bilhões, no topo da lista dos homens mais ricos do mundo! Isso tudo apesar de sua principal empresa, a Tesla, registrar uma queda significativa nas vendas – que representou menos de 10% das vendas mundiais da Toyota, maior fabricante de automóveis do mundo – de seus carros elétricos.

Ainda assim, em janeiro de 2025 a Tesla chegou a um valor de mercado de US$ 1,3 trilhão, enquanto a Toyota, que vende 10 vezes mais carros globalmente, para o mercado vale 5 vezes menos, ou aproximadamente US$ 262 bilhões. Segundo a Bloomberg, os 500 seres humanos mais ricos do mundo detêm hoje uma fortuna combinada de quase US$ 10 trilhões [10 trilhões de dólares], o que equivaleria a aproximadamente um terço do PIB americano em 2024.

Se considerarmos apenas os 813 bilionários americanos , o valor total de suas riquezas chegou a US$ 6,7 trilhões, ou aproximadamente um quarto do PIB americano. Segundo o site Inequality.org, a bagatela de 34% do US$ 1,5 trilhão que os 500 maiores bilionários do mundo ganharam em 2024 foram auferidos nas 5 semanas que se seguiram à vitória de Trump!

Se levarmos em conta que o vice-presidente da chapa de Trump, JD Vance, é um protegido de longos dados de outro Overlord das Big Techs, o americano Peter Thiel, o primeiro investidor externo de uma das primeiras redes sociais, conhecida como Facebook, O cenário de “tomada de controle hostil” de governos nacionais descrito acima começa a ficar bem mais explícito e evidente para quem ainda tem olhos para enxergar e neurônios para pensar.

Dentro deste contexto, diferente de outros brasileiros, eu não fui surpreendido de forma alguma pelo anúncio feito esta semana pelo co-fundador do Facebook e atual CEO e maior acionista da Meta Platforms, que controla não só esta rede social, mas também o Instagram e o WhatsApp, Mark Zuckerberg.

Ao anunciar que a partir de agora o Facebook não investirá nenhum esforço para verificar a veracidade das postagens de seus usuários, Zuckerberg apenas reforçou sua aliança com suas “parças” das Big Techs, bem como as origens dos fundos que catapultaram o Facebook para alcançar mais de 3 bilhões de usuários em todo o mundo.”

A partir de agora, o “vírus informacional” da Meta é liberado para se espalhar, na velocidade da luz, para todos os cantos do planeta, sem que exista nenhuma vacina eficaz para contê-lo, muito menos as ramificações imprevisíveis que a infecção epidêmica Causado por ele em quase metade da humanidade pode desencadear.

Seguindo a mesma genuflexão de Zukerberg, ao longo da semana passada, outros Overlords das Big Techs anunciaram, com um sorriso nos seus lábios digitais, doações da ordem de US$ 1 milhão por cabeça para a cerimonia de posse de Donald Trump em 20 de janeiro próximo.

Em poucas semanas, devo prever minhas previsões para 2036 – o primeiro centenário do início da Era Digital, desencadeado por um trabalho da autoria de Alan Turing publicado em 1936 – foram transportadas para 2025 numa velocidade que nem o Capitão Kirk ou Mr. seria capaz de acreditar!

Nesta altura, meu querido leitor, você deve estar se perguntando: mas existe algo que podemos fazer para conter a situação aparentemente aparente – dada a nossa tremenda dependência digital para quase tudo no mundo moderno – deste projeto do Império Global das Big Techs e o sequestro irreversível de tudo que é humano?

Incluindo o conteúdo e produtos mais íntimos de nossas mentes orgânicas extravagantes, imprevisíveis e maravilhosamente criativas que jamais poderão ser reproduzidas por nenhuma inteligência artificial ou qualquer máquina digital, não importa quantas vezes essa alucinação seja repetida e vendida como certos Evangelistas do Culto da Tecnologia?

Na minha modesta opinião, só um novo movimento humanista, mas agora a nível global, como tantas outras renascenças da condição humana que nos salvaram de outras encruzilhadas existenciais da nossa espécie, que são tão ou mais irreversíveis que a presente, poderiam impedir a ganância e a Utopia Tecnofeudalista que os Senhores Supremos do Vale do Silício vão tentar nos importar a todo custo.

Isso, ou um olhar celestial que, apesar de suas proporções cataclísmicas e devastadoras para as ambições insaciáveis ​​dos homens, escapou completamente do radar de todos os que acreditaram que uma civilização elétrica-eletrônica-digital seria completamente imune às forças descomunais deste Cosmos, do qual somos passageiros temporários, sem nenhum controle, nem da viagem, nem da ambiente.

Uma coisa que posso garantir: depois deste evento, nada mais será como antes!

Miguel Nicolelis é neurocientista e escritor. Professor Emérito de Neurobiologia, Duke University. Fundador do Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro da ASSDAP

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