Artigo | Governo federal contra a proteção de dados de seus cidadãos. Uma violência contra o País!

A Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia publicou, em 7 de janeiro de 2022, um “Acordo de Cooperação” no qual 109 bancos participantes da Associação Brasileira de Bancos terão acesso, pelo período de um ano, e a título de “degustação”, aos dados biométricos e biográficos de cidadãos brasileiros armazenados no banco de dados da Identidade Civil Nacional e da plataforma “Gov.br”.

Os bancos poderão acessar os dados de todos os cidadãos que nos últimos meses entraram na plataforma “Gov.br” e se cadastraram para terem direito a requisitar serviços online de diversos órgãos federais. As instituições financeiras também poderão acessar a base de dados da Identidade Civil Nacional, composta, entre outros, pela base de dados biométricos da Justiça Eleitoral, e a base de dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil – SIRC e da Central Nacional de Informações do Registro Civil.

Isso se dá em plena vigência da nova lei geral de proteção de dados, o que causa bastante consternação, eis que os dados recebem agora tratamento de bem a ser tutelado, servindo como instrumento de defesa dos seus titulares, e que busca a sua consolidação nas relações e práticas da sociedade.

Em nenhum trecho deste acordo é citado se os convenentes pediram anuência prévia à Autoridade Nacional de Proteção de Dados para dispor de dados pessoais de cidadãos brasileiros que, ao que tudo indica, não serão consultados se querem ou não conceder tais informações para os bancos.”

O que se disputa na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é a obrigatoriedade de que os titulares de direito tenham poder de anuência sobre o uso e disposição de seus próprios dados, o que, claramente, não está sendo respeitado na situação. E o que é mais grave é que essa violação legal venha do próprio governo brasileiro, eis que os dados estão nas plataformas de serviços públicos.

Subjaz por trás dessa relação com os bancos a questão de qual o interesse ou a finalidade do governo federal na cessão desses dados ou qual vantagem seria recebida a justificar esse compartilhamento. A despeito disso, os dados não são da titularidade do governo e a ele faltaria legitimidade para esse compartilhamento, o que, por si só, já revela a ilegalidade à luz da LGPD.

O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) enviou questionamentos à ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) alegando que o acordo traz uma série de inconsistências e relacionou quatro preocupações:

1) Ausência de explicitação de medidas de segurança de dados e uso compartilhado de dados com entes privados sem base legal e sem finalidade;
2) Insuficiente comprovação de interesse público e de finalidade legítima e ausência de transparência das finalidades e interesses privado;
3) Desproporcionalidade do acordo e desvio a finalidade de tratamento dos dados nas plataformas governamentais;
4) Falta de transparência e violação à autodeterminação informativa do titular de dados.

A ANPD afirmou, em 11 de janeiro, que instaurou de ofício um procedimento preparatório de fiscalização para averiguar a regularidade do compartilhamento de dados com os bancos, mas não há prazo para que todos os esclarecimentos necessários sejam prestados e, enquanto isso, o acordo segue vigente.

É público e notório que o mercado de dados pessoais já é a principal fonte de receita para algumas das grandes corporações da economia informacional. Também se tornou fundamental para segmentar a publicidade e organizar amostras de consumidores em públicos mais dispostos a consumir determinados produtos e serviços.

O governo federal, diante da ausência de interesse público na execução da medida, e diante de conflitos de interesses, por óbvio, não pode colaborar com empresas privadas, nesse sentido.

O Estado busca, ou deveria buscar, segundo artigo 5º da Constituição Federal, a proteção dos bens de seus cidadãos, sejam patrimoniais ou personalíssimos, e não atuar num mercado de negócios contrariando tais interesses. Nesse sentido, não há base legal que sustente o agir do governo federal, privilegiando o acesso dos bancos aos dados de seus cidadãos.”

Além da ausência de base legal, a finalidade legítima, pressuposto do artigo 6º, inciso I, da LGPD, de acordo com a prerrogativa do consentimento dos titulares, é vilipendiada, utilizando-se o banco de dados pessoais do governo federal para fim alheio à autorização dos seus titulares, o que fere a autodeterminação informativa do titular de dados.

Em outras palavras, o acordo representa verdadeira comercialização de dados pessoais, o que desvia completamente a finalidade para a qual os dados pessoais foram inicialmente fornecidos ao governo federal.

Certo é que os titulares de dados não foram consultados sobre seu consentimento para o compartilhamento, o que infere em ausência de transparência e privilegia o interesse privado corporativo ao interesse público ou interesse pessoal de cada um dos indivíduos envolvidos.

Ainda, ao permitir o compartilhamento de dados pessoais com as instituições bancárias, o governo federal acaba por permitir o acesso aos dados por um número desconhecido de funcionários do setor bancário, que terão acesso ilimitado a uma infinidade de dados pessoais, o que aumenta consideravelmente o risco de violação aos dados pessoais e uso descontrolado dessas informações.

Destaque-se que o acordo necessitaria contemplar as medidas de segurança a serem adotadas para mitigar os riscos de violação de dados, o que não aconteceu na prática, impossibilitando que seu cumprimento se dê dentro da legalidade, considerando já a nova Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD.

É inconteste a necessidade de proteção dos dados pessoais: “Você pode ter o seguro de saúde recusado com base em uma pesquisa que você realizou no Google sobre uma condição médica. Você pode ter um limite de crédito mais baixo, não por causa de seu histórico de crédito, mas por causa de sua raça, sexo ou código postal ou os tipos de sites que você visita” (tradução livre de ANDREWS, Lori. Facebook is using you. The New York Times. Feb. 4.2012).

Observando-se as manifestações das corporações que integram a economia informacional, constata-se que o direito à privacidade é e será o principal limitador e condicionador para a expansão do mercado de dados pessoais. Por outro lado, muitos operadores do direito e corporações defendem que o direito à privacidade impede a oferta de serviços e produtos adequados à melhor experiência dos consumidores. Nesse sentido, não é de se duvidar que o governo federal tenha agido a despeito da Lei Geral de Proteção de Dados, com vistas à expansão de dados pessoais, às custas da proteção dos direitos dos titulares.

Para concluir, a existência de uma economia da intrusão e da interceptação de dados pessoais clama pela transparência completa do consentimento das pessoas no uso desses dados, diante do interesse econômico das forças do mercado.

É muito grave que o próprio governo federal entregue a terceiros os dados de seus cidadãos. Hoje, às corporações; amanhã, a quem interessar. É um desvio de finalidade que não encontra guarida em nenhum fundamento legal, expondo e desprotegendo informações de todos os níveis, em verdadeira violação dos princípios fundamentais do cidadão, podendo alcançar até mesmo a soberania nacional. É preciso revetorizar os interesses envolvidos. Para tanto, é importante que nos apropriemos dos novos instrumentos legais como forma proteção não somente individual, mas também coletiva, disputando em todos os espaços essa nova proteção.

Os embates sobre a regulação do mercado de dados e a definição dos níveis de privacidade definirá o tipo de sociedade que viveremos.

 

Lara Lorena Ferreira é advogada
e integrante da ABJD-SP.

 

Thais Franco da Rocha é advogada especialista em direito
administrativo e proteção de dados pessoais. Certificação DPO EXIN.

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