Combate à escravidão faz 30 anos com resgates cancelados por insegurança | Artigo de Leonardo Sakamoto
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OS GRUPOS ESPECIAIS de fiscalização móvel, base do combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, completam 30 anos. Desde maio de 1995, mais de 66 mil pessoas foram resgatadas, salários e direitos pagos e criminosos responsabilizados naquilo que é considerado pelas Nações Unidas uma das principais políticas para o combate à escravidão em todo o mundo.
Contudo auditores fiscais do trabalho que coordenam esses grupos relatam que, devido à falta de segurança, operações estão sendo atrasadas ou canceladas e escravizados deixando de serem resgatados. Eles enviaram um ofício hoje a Luiz Marinho, ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça e Segurança Pública, Macaé Evaristo, ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, entre outras autoridades, denunciando a situação.
Além do Ministério do Trabalho, o grupo móvel conta com a participação do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, da Defensoria Pública da União e, nos últimos 15 anos até o final do ano passado, a PRF.
A suspensão na participação da instituição é efeito colateral da portaria 830/2024 do Ministério da Justiça para limitar a atuação da força policial às suas atribuições originais — que foram expandidas durante o governo Jair Bolsonaro. O ministério havia afirmado à coluna que um convênio deve ser estabelecido em breve com o Ministério do Trabalho e Emprego para dar continuidade ao apoio.
Segundo o ofício dos coordenadores do grupo, desde a publicação da portaria, a participação da Polícia Rodoviária Federal nas ações de repressão aos casos de exploração do trabalho análogo ao de escravo e ao tráfico de pessoas tem sido inviabilizada, comprometendo significativamente a estruturação da segurança necessária para o atendimento de casos graves e urgentes”.
Afirma que o acordo de cooperação técnica entre os ministérios não avançou. “Em decorrência da impossibilidade de contar com a participação da PRF nas operações de repressão, centenas de denúncias recebidas mensalmente estão sendo prejudicadas, resultando no adiamento ou cancelamento de ações cruciais”, diz. A Comissão Pastoral da Terra diz que a PRF participou de 25% de todas as operações desse tipo nos últimos 12 anos.
A reportagem entrou em contato com as assessorias dos ministérios sobre o acordo e publicará a posição do governo Lula tão logo receba uma resposta. Na manhã desta terça, um evento no Senado Federal, organizado pelo senador Paulo Paim (PT-RS) e com a presença do ministro Luiz Marinho, celebrou os 30 anos do grupo móvel.
Organizações da sociedade civil reforçam que a Polícia Federal, que tem a competência original para atuar no combate a esse crime, não consegue participar de todas as ações de fiscalização do grupo móvel e das Superintendências de Trabalho e Emprego nos estados. E que apesar da atuação dedicada de membros das Polícias Civis e Militares em vários estados, há regiões em que a relação entre o poder político e econômico local inviabiliza a parceria. Daí, a PRF surgiu para garantir apoio no que diz respeito à segurança.
É imperativo ressaltar o papel insubstituível da Polícia Federal, que atua como polícia judiciária e garante a segurança das equipes, e da Polícia Rodoviária Federal, cuja atuação tem sido sistemática e crucial na garantia da segurança das equipes de fiscalização. A organização de operações de combate ao trabalho escravo sem a participação de ao menos uma dessas instituições não se mostra viável nem adequada”, diz o ofício dos auditores.
De acordo com o frei Xavier Plassat, um dos coordenadores da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, a ausência da PRF coloca em risco a vida dos servidores públicos.
“Basta conhecer minimamente as condições severas enfrentadas pela fiscalização para ter a certeza de que a presença de uma força policial qualificada é fundamental para a segurança. A Polícia Federal assume parte dessa presença, trazendo sua competência própria de polícia judiciária da União. Mas é longe de ser o suficiente “, afirma Plassat.
Vale lembrar que o medo da Chacina de Unaí, quando três auditores fiscais do trabalho e um motorista foram executados a mando dos irmãos Antério e Norberto Mânica, ricos fazendeiros do Noroeste de Minas Gerais, durante fiscalização rural de rotina em 28 de janeiro de 2004, ainda paira sobre os servidores públicos que atuam nessa área.
A redução na quantidade de resgates também traz outro efeito colateral: a diminuição no médio prazo do tamanho do cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho análogo ao de escravo, a chamada “lista suja”.
Divulgada pelo MTE desde novembro de 2003, o cadastro é atualizado semestralmente. Ele torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas flagradas por submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo.
Os nomes são incluídos após os empregadores autuados em fiscalizações exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa, e permanecem no sistema por dois anos. Eles podem fazer acordos para ir para uma lista de observação, o que demanda o cumprimento de uma série de critérios e compensações.
Apesar de a portaria que regulamenta a “lista suja” não impor bloqueio comercial ou financeiro às pessoas citadas, a relação tem sido usada por bancos e empresas para gerenciamento de risco, dentro e fora do Brasil. Por essa razão, as Nações Unidas consideram o instrumento outro exemplo brasileiro no combate ao trabalho escravo.
Menos fiscalizações representam menos empregadores responsabilizados. Ou seja, a redução na participação da PRF tende a reduzir o número de entradas na “lista suja”, o que beneficia os infratores.
A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.”
Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 66 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico. No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995.
Leonardo Moretti Sakamoto é um premiado jornalista brasileiro. Além da graduação em jornalismo, possui mestrado e doutorado em ciência política pela Universidade de São Paulo