Lidando com a desigualdade pandêmica – um novo contrato social para uma nova era
Do exercício do poder global ao racismo, à discriminação de gênero e às disparidades de renda, a desigualdade ameaça nosso bem-estar e nosso futuro. Precisamos desesperadamente de um novo pensamento para detê-la e revertê-la.
Frequentemente ouvimos que uma maré de crescimento econômico eleva todos os barcos. Mas, na realidade, uma maré crescente de desigualdade afunda todos os barcos. Altos níveis de desigualdade ajudaram a criar a fragilidade global que está sendo exposta e explorada pela COVID-19.
O vírus está destacando as desigualdades de todos os tipos. Representa o maior risco para a saúde dos mais vulneráveis e seus impactos socioeconômicos concentram-se naqueles que são menos capazes de lidar com eles. A menos que ajamos agora, mais 100 milhões de pessoas poderão ser empurradas para a extrema pobreza e poderemos ver a fome em proporções históricas.
Mesmo antes da COVID-19, pessoas de todos os lugares estavam levantando suas vozes contra a desigualdade. Entre 1980 e 2016, o 1% mais rico do mundo capturou 27% do crescimento acumulado total da renda.
Mas a renda não é a única medida de desigualdade. As oportunidades na vida dependem de sexo, família e origem étnica, raça, se as pessoas têm ou não uma deficiência e outros fatores. Múltiplas desigualdades se cruzam e se reforçam através das gerações, definindo a vida e as expectativas de milhões de pessoas antes mesmo de nascerem.
Apenas um exemplo: mais de 50% das pessoas de 20 anos em países com desenvolvimento humano muito alto estão no ensino superior. Nos países com baixo desenvolvimento humano, esse número é de 3%. Ainda mais chocante, cerca de 17% das crianças nascidas há 20 anos nesses países já morreram.
A raiva que alimenta os movimentos sociais recentes, desde a campanha antirracismo que se espalhou pelo mundo após a morte de George Floyd ao coro de mulheres corajosas que nomeiam os homens poderosos que as abusaram, é mais um sinal de desilusão total com o status quo. E as duas mudanças sísmicas de nossa era – a revolução digital e a crise climática – ameaçam consolidar ainda mais a desigualdade e a injustiça.
A COVID-19 é uma tragédia humana. Mas também criou uma oportunidade geracional para construir um mundo mais igual e sustentável, com base em duas ideias centrais: um Novo Contrato Social e um Novo Acordo Global. Um novo contrato social unirá governos, pessoas, sociedade civil, empresas e outros em causas comuns.
A educação e a tecnologia digital devem ser dois grandes facilitadores e equalizadores, fornecendo oportunidades ao longo da vida para aprender como aprender, adaptar-se e adquirir novas habilidades para a economia do conhecimento.
Precisamos de uma tributação justa sobre a renda e a riqueza, e uma nova geração de políticas de proteção social, com redes de segurança incluindo a cobertura universal de saúde e a possibilidade de uma renda básica universal estendida a todos. Para tornar possível o novo contrato social, precisamos de um novo acordo global para garantir que poder, riqueza e oportunidades sejam compartilhados de maneira mais ampla e justa no nível internacional.
Um novo acordo global deve se basear em uma globalização justa, nos direitos e dignidade de todo ser humano, em viver em equilíbrio com a natureza, no respeito pelos direitos das gerações futuras e no sucesso medido em termos humanos e não apenas econômicos.
Precisamos de governança global baseada em participação plena, inclusiva e igualitária em instituições globais. Os países em desenvolvimento devem ter uma voz mais forte, desde o Conselho de Segurança das Nações Unidas até os Conselhos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial e além.
Precisamos de um sistema comercial multilateral mais inclusivo e equilibrado, que permita aos países em desenvolvimento subir na cadeia de valor global.
A reforma da arquitetura da dívida e o acesso ao crédito acessível devem criar espaço fiscal para gerar investimentos na economia verde e equitativa.
O Novo Acordo Global e o Novo Contrato Social colocarão o mundo de volta aos trilhos para cumprir a promessa do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas e alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – nossa visão globalmente acordada de paz e prosperidade em um planeta saudável até 2030.
Nosso mundo está no ponto de ruptura. Mas, enfrentando a desigualdade, com base em um novo contrato social e um novo acordo global, podemos encontrar o caminho para melhores dias pela frente.
António Manuel de Oliveira Guterres é um engenheiro, político e diplomata português que serve como nono secretário-geral da Organização das Nações Unidas desde 2017.