Precisamos falar das vítimas que não denunciaram agressores | Artigo de Lyvia Prais

A cada minuto, oito mulheres são vítimas de agressão no país, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O isolamento social imposto pela pandemia de covid-19 agravou essa situação e, embora o número de denúncias também tenha aumentado, o índice de violência só cresce, levando em consideração também os casos subnotificados e as denúncias não formais (não judiciais).

Esse é um discurso que parece um disco arranhado, que se repete infinitas vezes, mas, lamentavelmente, essa é uma representação cotidiana da sociedade machista brasileira. E o pior: torna-se, cada vez mais, um ruído distante aos nossos ouvidos.

Toda vez que uma mulher denuncia um crime de violência doméstica volta à tona a necessidade de falar sobre isso. Cada vez que um crime contra a mulher tem repercussão na mídia empresarial e na internet, vítimas sobreviventes dessa violência sofrem pela sombria lembrança do que foi vivido e pelo arrependimento e lamentação por não ter denunciado em tempo.

A pandemia escancarou a subnotificação não só do vírus, mas dessa violência que está enraizada na sociedade patriarcal. A subnotificação dos casos de violência doméstica não passou a existir durante a pandemia, ela sempre caminhou ao lado desses crimes.

Em um relacionamento abusivo regado a violências físicas e psicológicas, na maioria dos casos, a mulher tem apenas dois caminhos e ambos culminam em consequências terríveis. Por diversos motivos, a mulher aceita o ciclo de violência e acaba sendo morta, seja pelas mãos do seu agressor, ou pela má qualidade de vida imposta pelos traumas físicos e psicológicos causados a longo prazo.”

O outro pode ser considerado sorte e é quando a mulher tem o mínimo de rede de apoio familiar e consegue fugir da vida ao lado do agressor. No entanto, esse é um longo caminho a ser percorrido. Primeiro porque são vários os motivos que a impedem de denunciar formalmente o autor. Segundo porque a partir dali uma série de transtornos emocionais começam a fazer parte da vida dessa mulher. O transtorno do estresse pós-traumático é um deles e também pode ser fatal.

Muitos são os motivos pelos quais inúmeras mulheres não denunciam seus algozes. São tantas e demasiadamente profundas as razões pelas quais a vítima de violência escolhe ficar no relacionamento abusivo. Há um fino limite entre permanecer ou ir embora, que confunde a vítima sobre sobreviver e perder tudo.

Para mulheres em condições de vulnerabilidade social aceitar a violência pode ser o pagamento pela própria sobrevivência. Viver em um lar violento pode ser melhor do que não ter um lar, tolerar as contínuas violações pode ser melhor do que passar fome e não ter como sustentar seus filhos. Mas para aquelas que conseguem se livrar dessa vida, também, nem sempre lhes é resguardado o direito de denunciar.

A dificuldade de denunciar é uma realidade de muitas sobreviventes vítimas da violência doméstica. E ela começa no próprio âmbito familiar e social, que desacredita e culpabiliza a vítima. Essa crença cruel imposta pelo patriarcado, de que a culpa é da mulher, destrói ainda mais a vítima, que já está completamente frágil e vulnerável. E é aqui que muitas se veem silenciadas, obrigadas a seguir em frente sem conseguir denunciar formalmente nos órgãos competentes.

É PRECISO FALAR SOBRE OS TRAUMAS

É preciso falar sobre os traumas consequentes na vida da mulher que sofreu violência física, psicológica e/ou sexual. Fala-se muito das fases do ciclo durante a violência, entretanto, pouco se fala em transtorno pós-traumático nesses casos. O fato é que a maioria das vítimas sobreviventes passam por essa fase, que muitas vezes é agravada por outros tipos de transtornos e isso também faz parte da violência doméstica.

Essa natureza cíclica da violência permite que os danos perdurem por anos a fio até que a mulher tenha condições psíquicas, materiais e sociais de buscar a tutela penal, hipótese sequer cogitada por grande parte das vítimas, que seguem em silêncio, inertes pelo medo que as corrói.”

Em meio a transtornos e traumas, quando uma mulher consegue adquirir condições necessárias para procurar amparo legal e fazer justiça, já é tarde demais. E é isso que tem se revelado a partir de casos públicos, porque a justiça não garante prazo para isso. A violência institucional acontece muitas vezes em casos de flagrante, quando se é negada a assistência, imagine se a justiça vai garantir acolhimento e investigação de denúncias tardias?

Sem mencionar que os delitos no crime de violência doméstica têm aplicação própria pelo Código Penal. As infrações penais como vias de fato e ameaça, por exemplo, prescrevem em três anos. Ou seja, uma mulher que demorou para sair do ciclo violento que a adoeceu psicologicamente encontrará dificuldades enormes para receber amparo legal depois que esses crimes forem prescritos. Além disso, a fragilidade e decadência no reconhecimento do que se enquadra como provas ou não é frustrante.

POR ISSO RESOLVI ESCREVER

E é justamente por isso que resolvi escrever este artigo. Eu fui vítima de violência doméstica há cinco anos, durante dois longos anos. E o fator que mais me impediu de denunciar meu agressor foi o medo. O fato de tornar as agressões públicas me causava medo pela exposição que eu teria que enfrentar sozinha, além de perder o emprego que o agressor havia me “arranjado”.

Os tapas na cara, a mordida no rosto que tive que esconder com maquiagem para ir trabalhar, os puxões de cabelo e socos, atualmente fazem parte da pior fase do que sofri. Não ter tido o sentimento de justiça e ter sobrevivido sozinha à violência física me custou minha própria saúde. Foram duros e longos cinco anos acometida por transtornos psiquiátricos e doenças crônicas de fundo psicossomático até que eu pudesse ter o equilíbrio emocional de falar sobre isso sem sofrer surtos psicóticos.”

Cada vez que um caso como o meu ganha repercussão pública eu fico abalada, assim como várias outras mulheres que eu conheci desde que usei minhas redes sociais para escrever sobre os abusos que vivi. O mais chocante foi constatar que não só os casos de violências são muitos, mas que a maioria dessas mulheres também não denunciaram. Minha rede de acolhimento virtual me faz bem, mas, por outro lado, me indigna. Essa indignação vem de não ter sido acolhida por pessoas próximas que hoje se colocam virtualmente lutadores pelo fim da violência contra mulher sempre que um caso vem à tona.

A indignação me rasga o peito quando procuro amparo legal e sou ridicularizada pelo tempo que deixei passar sem ter feito denúncia. Como foi o caso de advogados que consultei recentemente. Nota-se então uma baixa eficácia na lei e a grande necessidade de sua reformulação, no que se refere inclusive em atendimento psicossocial e humanizado.

A violência que sofri não ficou lá atrás, no passado. Ela trouxe consequências drásticas para minha vida e ela não deixa de existir porque se passaram alguns anos.”

A sociedade só vai avançar na erradicação das violências contra a mulher quando parar de descredibilizar as vítimas e permitir que algozes sigam a vida naturalmente. Isso não é um problema individual, é um problema social, coletivo, de uma sociedade doente que, sem enxergar, flerta com o fascismo e, cada vez mais, destrói os direitos sociais e extermina mulheres, negros e LGBTS.

Que fique registrado que o agressor não tem cara. Ele pode estar ao seu lado, ser seu amigo, seu irmão, seu filho, seu vizinho, seu chefe. Ele pode ser aquele cara legal que o primeiro ímpeto das pessoas vai ser dizer “Fulano? Mentira, ele é muito gente boa”. Os agressores estão entre nós, cotidianamente, usando máscaras para se proteger da justiça e não do vírus.

Não duvide quando uma mulher disser que foi agredida, não a culpe, não defenda o agressor na frente dela. Porque ela está lutando para sobreviver a marcas que jamais serão cicatrizadas em sua alma, em seu corpo e em sua mente. Você que não passou por isso não sabe como é essa dor.

Minha luta pela superação é cotidiana e seguirei criando forças de mãos dadas com outras mulheres que também lutam pela libertação feminina, pela justiça e pelo fim da cultura de violências contra a mulher. Buscando encorajar, por meio de minha própria experiência, que outras mulheres consigam ter condições e coragem para denunciar seus agressores. Não é fácil, mas só quem viu a morte de perto sabe o gosto de ser sobrevivente.

 

 

Lyvia Prais é jornalista e membro
do Coletivo de Mulheres do PT de Minas Gerais.

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