Artigo | Darcy, a quadrinha e a quadrilha, por Maria Luiza Franco Busse
Artigo de Maria Luiza Franco Busse
Os candidatos aos cargos de vereador e prefeito nas próximas eleições de novembro têm como obrigação discutir e confrontar o novo marco regulatório do saneamento aprovado pelo Senado e no aguardo da sanção daquele que ocupa a presidência.
Para além de ser uma regulação que provoca atritos irremediáveis entre as instâncias públicas e privadas e causa grande insegurança jurídica que sempre sobra para a população, o projeto embute um horror central: a privatização da água bruta. Em outras palavras, a água que brota das nascentes naturais vai passar a ter dono e dela só beberá quem e quando o proprietário quiser e, assim mesmo, se puder pagar a conta. O povo do vilarejo de Bacurau, filme que imbrica realidade e ficção, conta bem essa história.
De acordo com o projeto, não serão mais os rios e as cascatas os legítimos e reconhecidos produtores da água que vem do chão das maiores reservas aquíferas do planeta que o Brasil abriga na tríplice fronteira do Sul e em Alter do Chão, no Pará, região Norte.
É bom frisar a localização, pois até as coordenadas geográficas vêm sendo alteradas nestes tempos de estupidez cognitiva palaciana. As empresas privadas é que passam a ser consideradas produtoras.
O segundo parágrafo do projeto revela a violência da tunga : “As outorgas de recursos hídricos atualmente detidas pelas empresas estaduais poderão ser segregadas ou transferidas da operação a ser concedida, permitidas a continuidade da prestação do serviço público de produção de água pela empresa detentora da outorga de recursos hídricos e a assinatura de contrato de longo prazo entre esta empresa produtora de água e a empresa operadora da distribuição de água para o usuário final, com objeto de compra e venda de água”.
O relator do projeto é o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), dono da Solar, empresa que está entre as 20 grandes fabricantes da Coca-Cola no mundo e a segunda maior engarrafadora do país. A relação da marca de refrigerantes com a água pública vem de longe e cheia de abuso, delito e conflito.
No início destes anos 2000, um movimento de mulheres de uma comunidade do estado de Kerala, na Índia, deu um basta na multinacional que extraiu milhões de litros de água pura de seis poços perfurados de modo ilegal com bombas elétricas ultrapossantes. Como resultado, o nível dos lençóis freáticos baixou de 45 metros para 150 metros de profundidade.
Além disso, outros 260 poços secaram por conta da poluição dos dejetos sólidos lançados nas fontes aquíferas e muitos homens, maridos, companheiros, filhos e netos daquelas mulheres, se suicidaram no desespero da falta de trabalho e do desterro.
Em 2003, o juiz local proferiu a sentença que cessou os bombeamentos: “A doutrina da confiança pública repousa antes de mais nada sobre o princípio tácito de que certos recursos como o ar, a água do mar, as florestas têm para a população em sua totalidade uma importância tão grande que seria totalmente injustificado fazer delas objeto da propriedade privada.
Os mencionados recursos são um dom da natureza e deveriam ser gratuitamente colocados à disposição de cada um, seja qual for sua posição social. Já que esta doutrina impõe ao governo a proteção destes recursos de tal maneira que todo mundo possa deles tirar proveito, ele não pode autorizar que eles sejam utilizados por proprietários privados ou para fins comerciais […]. Todos os cidadãos sem exceção são beneficiários das costas, dos cursos d’água, do ar, das florestas, das terras frágeis de um ponto de vista ecológico. Enquanto administrador, o Estado tem por lei o dever de proteger os recursos naturais que não podem ser transferidos à propriedade privada”.
Em 2004, a Coca-Cola fechou a fábrica no distrito agrícola de Plachimada.
A Alta Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas reconhece a água como um bem público. O corpo humano é feito em média de 60% de água e o ser humano não sobrevive a mais de cinco dias sem beber água.
O brasileiro Darcy Ribeiro dizia que:
o único fator causal inegável do nosso atraso é o caráter das classes dominantes brasileiras (…) uma elite retrógrada que só atua em seu próprio benefício. Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes”.
Esse é o espírito que inspira o lamento da quadrinha que atravessa por muitos anos a história do Brasil: “Em cima daquele morro passa boi, passa boiada, só não passa a moreninha de cabelo cacheado”.
Maria Luiza Franco Busse é jornalista e semióloga, graduada em História pela Universidade Gama Filho, mestra e doutora em Semiologia pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ