Artigo | Entenda: a dívida pública como instrumento de bem-estar social

A dívida pública como instrumento de bem-estar social | Artigo de Carlos A. Bello

A dívida privada significa que uma pessoa pega dinheiro emprestado para fazer o que quiser e quem empresta quer ter garantias que vai receber. Quanto maior a dívida, mais preocupante a situação para o emprestador. Se for banco, o não pagamento de muitos devedores pode provocar grandes impactos sobre quem colocou o dinheiro no banco e aí crise geral.

A dívida pública pode até assumir um caráter parecido, mas não é para isto que ela existe. Só deve haver dívida pública, vale dizer de todos nós, se os recursos forem usados para propiciar bem-estar social, seja para reduzir a pobreza ou a desigualdade social, melhorar a saúde ou a educação (entre outros serviços públicos), gerar emprego e renda ou ampliar a infraestrutura do país, dentre outras maneiras de aumentar o bem-estar social.

Então, quando aumenta a dívida pública devemos analisar quem se beneficiou do gasto público e por que. Se houver aumento de bem-estar social, ele deve ser de alguma forma quantificado para que possamos avaliar se valeu a pena, se o ganho social supera a perda social expressa no aumento da dívida.”

O auxílio emergencial evitou que cerca de 28% da população que vive nas regiões metropolitanas brasileiras caísse na pobreza. Por exemplo, vejamos o caso do auxílio emergencial. Podemos falar que ele evitou que cerca de 28% da população que vive nas regiões metropolitanas brasileiras caísse na pobreza, preservando a renda de 23 milhões de brasileiros durante a crise (1).

Podemos falar também da economia, pois Laura Carvalho (2) mostrou que o Brasil gastou 8,4% do PIB com o auxílio. Isso resultou em previsões de queda de 4,4% do PIB para o país em 2020, enquanto as expectativas de mercado eram de queda de 6,5% no meio do ano e de 9% no começo da pandemia. Nessa linha, cabe lembrar que, para cada R$ 1 investido no Bolsa Família, o PIB aumenta em R$ 1,78. Se o auxílio emergencial seguir o mesmo perfil, sua permanência deve garantir crescimento do PIB, aumento da arrecadação e, consequentemente, redução da relação dívida/PIB, e não aumento (3).

Foi bem diferente o que ocorreu entre 1994-2017, quando a principal causa do aumento da dívida pública foram os elevados juros reais (acima da inflação) somada, de 2014 para cá, à crise econômica que reduziu a arrecadação de impostos. Juros reais elevados beneficiam um reduzidíssimo contingente de pessoas. Talvez fosse diferente se tivéssemos aumento dos investimentos que geram emprego e renda, mas isto não ocorreu de modo significativo.

Vejamos o outro lado. A relação entre a dívida pública e o PIB de fato subiu em 2020, de cerca de 74 para 89%, dos quais os gastos emergenciais corresponderam a 79%.”

A argumentação de economistas que concentram sua atenção nesta relação é a de que esse aumento, expressão da ruptura da regra do texto de gastos (cujo incremento deveria ser menor do que a inflação), ao elevar o risco Brasil (risco de uma ruptura no pagamento dos encargos da dívida, aos olhos dos investidores em títulos), provocaria fuga de recursos do país e, com ela, desvalorização cambial e aumento das taxas de juros, acarretando perda de emprego e renda.

Mas o aumento da dívida de fato causou o mal que tais economistas prognosticaram? Tomando o índice Bovespa como o principal indicador do mercado de capitais brasileiro, pode-se notar que em 19 de fevereiro de 2021 seu índice agregado era de 118.430,53 pontos, maior do que o vigente um ano atrás (116.192,38), e quase o dobro do índice mais baixo no momento mais pessimista da pandemia (62.799,36 pontos em 27 de março de 2020).

De fato, o dólar valorizou-se 23,8% (5,41 versus 4,37 reais por dólar), mas isto não pode ser avaliado como fuga de capitais, ainda mais numa crise que tende a impactar muito mais economias subdesenvolvidas como a nossa.

De todo modo, é inegável que certos interesses perderam nesse contexto. A desvalorização do real rebaixa, em dólares (moeda de conta mundial), o valor e o lucro global de empresas com recursos aportados no Brasil, além de incrementar o valor em reais de dívidas contraídas em dólar.

Muitas empresas provavelmente possuem dívidas em dólar porque, mesmo com a queda recente dos juros no Brasil, os juros externos são menores do que os vigentes aqui. Esse diferencial de juros tem sido há muito tempo um meio de aumentar os lucros de empresas aqui situadas. E a desvalorização cambial também impacta os lucros de muitas empresas porque elas não conseguem repassar o aumento de custos com suas importações. De fato, a inflação ao consumidor é de cerca de 4%, bem menos do que desvalorização cambial do período.

Essas perdas empresariais justificam o empenho em reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB e, por isto, evitar um auxílio emergencial mais expressivo? Parece difícil dizer que sim. Mas o fato é que o empenho deu certo, uma vez que os 44 bilhões de reais aprovados pelo Congresso são muito inferiores aos 321 bilhões transferidos aos trabalhadores pobres em 2020.

Cabe salientar que as soluções preconizadas pela maioria desses economistas para reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB passam por reformas para a redução dos gastos com o funcionalismo público e de gastos sociais obrigatórios (como saúde e educação, com percentuais da receita fixados na constituição).”

Raramente há menção ao elevadíssimo volume de desonerações e isenções fiscais às empresas e pessoas físicas, que chegaram a 373 bilhões de reais em 2017 e caíram para cerca de 300 bilhões entre 2018 e 2020, nelas incluídas a ausência de tributação de lucros e dividendos das pessoas físicas, por exemplo (4). Assim, reduzir bastante essas isenções seria suficiente para implantar um novo auxílio emergencial bem mais generoso.

O que de fato precisamos para sair de uma crise que vem desde 2014 são políticas de geração de emprego e renda. Para tanto, é fundamental romper com a regra do teto de gastos. Mas é preciso ultrapassar a análise do auxílio emergencial. Como o nome diz, ele somente faz sentido nesse momento de profunda crise, para evitar piora da situação econômica e também do quadro sanitário, pois ajudaria a deixar mais gente por mais tempo em casa. O que de fato precisamos para sair de uma crise que vem desde 2014 são políticas de geração de emprego e renda e de redução da desigualdade social e da pobreza. Para tanto, é fundamental romper com a regra do teto de gastos e pensar nos benefícios que podem advir dos gastos públicos.

Somente assim podemos evitar o subfinanciamento da saúde e chegar a investir 10% do PIB, como preconiza o Plano Nacional de Educação. Apenas gerando emprego e renda podemos garantir uma razoável inserção social dos pobres, haja vista a péssima situação atual – o IBGE (PNAD Contínua do 3°trimestre de 2020).


Carlos A. Bello possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo, mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991) e doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1999). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Campus Guarulhos, e pesquisador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic/USP). 

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